Re-Referenciando

Contra as Verdades Vendidas pelo Status-quo

Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado.

— George Orwell, 1984

Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem

— Michel Foucault, Vigiar e Punir

Um facto é verdadeiro não porque obedece a critérios objectivos, rigorosos e comprovados na fonte, mas simplesmente porque outras formas de media repetem as mesmas informações e “confirmam”… A repetição substitui à verificação. Se a televisão (a partir de uma transmissão ou de uma imagem de agência) apresenta uma noticia e em seguida a imprensa escrita e a rádio a retomam, só basta isso para creditá-la como verdadeira.

— Ignacio Ramonet, A Tirania da Comunicação

De Volta aos Kilombos

…e a mente é um quilombo moderno, lugares para todos os pensamentos refugiados da insensatez reinante do planeta Terra.

— BNegão, Enxugando o Gelo

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A palavra 'kilombo' tem origem na língua mbundu, do tronco lingüístico bantu, significa um ponto de encontro em uma área previamente conhecida, um lugar de descanso, de pouso, para onde convergem e se encontram populações nômades, grupos conhecidos e/ou aparentados. No período colonial os negros mbundu da atual região de Angola foram trazidos para a América Portuguesa aos milhares, decorre daí o fato da maioria dos escravos das colônias portuguesas serem falantes de línguas bantu.

Sem muito embargo a versão colonialista colocada em tantos livros escolares afirma que kilombos nada mais eram que ajuntados de negros que sobreviviam, isolados e as escondidas, na simplicidade de aldeias miseráveis, esquecida pelas elites coloniais em algum rincão no interior do Brasil.

"Lugar de negro fugido" foi o que te disseram… como é simples e conveniente reduzir os kilombos a meros "refúgios de escravos" e, assim, invisibilizar a espacialidade fluída e as estratégias de luta e auto-libertação dos africanos contra a empresa colonial. Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado, a frase de George Orwell é quase um resumo da situação referencial a que são submetidos os africanos e sua história no período colonial. Quem defende a "história estatal" ou "oficial" se reconhece como herdeiro da empresa colonial e, nessa posição busca garantir a constância e a hegemonia de suas próprias referências em detrimento de outras tantas referências, das outras versões históricas.

Chega a causar espanto a contradição em que a história oficial coloca a empresa colonial - que teria utilizado aberto mão de tantos esforços para acabar com populações inexpressivas e insignificantes. Para além de deslizes como este, as ilusões que conformam a realidade histórica oficial são tão bem arquitetadas quanto possível, como a exibição da cabeça empalada de Zumbi dos Palmares nas praças públicas de Recife: um lembrete aos negros escravos sobre o que acontece com quem ousa se levantar contra a supremacia dos senhor colonial.

Na América Portuguesa os kilombos foram espaços autônomos de negros insurgentes, módulos de rebeldia que mais de uma vez, articulados em rede, desafiaram todo o projeto continental de governabilidade e exploração lusitana. Alguns por mais de um século sustentaram formas eficientes de produtividade - alimentos, cestarias, tecidos, cerâmicas e metalurgia - gerando excedentes que permitiram trocas significativas com grupos indígenas e camponeses pobres que lhes eram vizinhos. Em seu apogeu os kilombos mais prósperos como o de Palmares (1670) abrigaram não menos que 20 mil pessoas, contando com extensas redes de informação inseridas secretamente em fazendas e vilas dos portugueses, criaram bases militares e milícias que ficaram conhecidas entre seus inimigos por sua eficiência na guerra de guerrilha.

Mas… certamente aos olhos dos empreendedores coloniais - senhores de engenho e brancos escravocratas - o maior perigo originado nos kilombos não eram suas milícias. A principal ameaça era a ampla difusão de uma forma distinta de viver, um conjunto novo de referências povoando o imaginário dos negros cativos em senzalas sujas: seus escravos sabendo da existência de um lugar auto-governado por negros que foram escravos como eles, e que através da insurreição se faziam livres por sua própria força lutando e vencendo em diversas ocasiões o aparato de repressão colonial. Era inadmissível e ameaçador demais a existência de uma rede de kilombos onde negros rebeldes decidiam seu destino em coletividades que se juntavam em terreiros, que elegiam líderes somente em situações de combate, e que sempre se mostravam dispostos a defender com armas a liberdade de seu novo-velho modo de viver. A grande ameaça de um quilombo como Palmares é que, nele, a cada dia e por muitos anos, chegaram homens e mulheres querendo ser pessoas.

http://www.terrabrasileira.net/folclore/origens/africana/quilomba.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo

http://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo_dos_Palmares

A Volta dos Kilombos

Tekoá: um lugar para o Modo de Ser

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A beira da estrada é possível ver cestos coloridos pendurados em galhos, ao fundo a barraca de lona faz frente a fogueira, dois homens se sentam despreocupados a sombra entalhando a imagem de animais na madeira, quase indiferentes ao transito de carros que passa ali a poucos metros, crianças correm e brincam na terra, levam sua marca. Uma mulher trança um balaio e conversa com a outra, mais velha que sentada em frente a barraca ri singela com sua boca sem dentes.

O tempo passa vagaroso num acampamento Guarani, enquanto os carros dos juruá passam rápidos de um lado para o outro. Tataendy diz à Xunü que quer beber e a bebida, e que quer festa. Hoje seu interior está apertado e essa semana ele quase não sorriu. Agora Junta os ferros perto do fogo e se acocora para começar a entalhar outro vixúrangá.

Xunü sabe que a cachaça na beira da estrada é festa pequena, festa que se festeja quase só. Não… esse não é o lugar do modo de ser. Os olhares dos juruá carregam a censura, a ignorância, a pena e o poder. Xunü olha para os carros a passar e lembra de sua avó a contar da época em que vieram os brancos, os antigos os chamaram de retavá'e'kuery, aqueles que surgiam como formigas. "Eram muitos, e atrás desses vieram muitos mais". Poucos são os que como Xunü lembram desse nome. A maioria os chama Juruá. Nome muito antigo, do tempo em que vieram com palavras macias e convenceram os Guarani a lutar contra os parentes - suas palavras não brotavam de suas almas, eram lançadas para fora de suas bocas peludas que tanto impressionava os Mbyá.

Mas isso foi a tempos antes do tempo de Xunü, antes da terra ser talhada pelas cercas e pelas estradas. Agora os juruá passam com seus carros - ignorância, poder e censura - eles dizem que o seu jeito é o certo - enquanto os guarani nada mais fazem que seguir seu modo de ser, em sua risonha indolência, bebem, cambaleiam e dormem onde assim desejarem.

O acampamento é o devir da incerteza, é lugar da sombra a beira da estrada, da venda do artesanato, da ambígua exigência de um mundo cada vez mais talhado por muros e cercas que exige que o "índio" seja livre e ao mesmo tempo respeite regras e costumes nos quais não se reconhece, que se limite a ser um "cidadão" aparentemente exuberante mesmo que totalmente livre do símbolo da festa.

Com o sol já quente do meio da manhã o filhinho de Tataendy traz com ele a cachaça que encontrou na beira da estrada, Ele pode até não entender ainda os Olhares dos juruá, já percebe porém que aquele não é o lugar do modo de ser, mas os adultos têm sede e é isso que importa e é uma sede de festa que aquele trago possa talvez saciar. Mais tarde haverá risada no acampamento para por em dúvida a essência do lugar. A onça toma forma na madeira branca pelas mãos de seu pai, as crianças correm e um bando de pássaros atravessa o céu. Lá do alto talvez eles possam ver uma mata bela para ser o nosso lugar.

Para os Guarani o ''Tekoá" é o lugar de seu modo de ser, essa expressão tão erroneamente traduzida pelos juruá como "aldeia", "terra" ou "comunidade" condensa em si uma série de princípios e costumes no qual o "Tekó", o modo de ser guarani se funda. Estes costumes e princípios sociais, espaciais, espirituais e relacionais garantem entre outras coisas, a coesão, o respeito as diferenças internas e. Mesmo aqueles dentre os Guarani que sobrevivem nos acampamentos sabem e afirmam que não pode haver Tekó sem existir Tekoá.

Magonismo & Antarquia

Foi a partir da convivência os Guarani que o filósofo anarquista e antropólogo nascido na França, Pierre Clastres deu forma a análise que melhor explicou as formas políticas desta sociedade. Com relação à organização política destes grupos, se pretendemos evitar as análises evolucionistas que sempre definem outros povos pela ausência de algo encontrado na suposta sociedade ocidental industrial, então é hora de considerarmos a possibilidade dos indígenas não serem somente povos sem estado mas efetivamente "sociedades contra o estado", ou seja, contra a própria segmentação da sociedade entre governantes e governados. Clastres não concluiu sua obra, um acidente de carro tirou sua vida no ano de 1977 deixando uma série de textos inacabados e outros tantos esboços, alguns dos quais seriam reunidos mais tarde no livro ''Arqueologia da violência: ensaios de antropologia política".

Clastres no entanto, não foi o primeiro anarquista a perceber como o diálogo entre as referências indígenas e o pensamento libertário pode dar bons frutos. Esse mérito é exclusivamente dos teóricos da Revolução Mexicana de Vila e Zapata, os irmãos Ricardo e Henrique Flores Mágon que, no final do século XIX e início XX apontavam para a necessidade de uma regeneração do pensamento anarquista a partir das referências e dos saberes indígenas - Democracia direta, dádiva, mutualidade, comunalidade territorial - os magonistas foram também os primeiros anarquistas a lutar abertamente ao lado dos "pueblos", principalmente entre os Yake e os Mayo, por autonomia política, econômica e territorial.

Ricardo e Henrique Flores Mágon eram indígenas do México. A despeito de toda a ideologia de branqueamento que marcaram suas imagens, possuíam muitas referencias ameríndias desde a infância. O pai, Teodoro Flores (da etnia Nahua descendente dos antigos Astecas) lutou na Guerra da Reforma contra a invasão dos Estados Unidos junto às tropas de Benito Juárez. A mãe, Margarita Mágon (considerada para os padrões classificatórios puristas da época uma "mestiça"), marcou a todos que a conheceram por sua naturalidade libertária, sendo até os dias de hoje reconhecida como um símbolo da força e da organização das mulheres indígenas no México.

Clastres provavelmente não conheceu o magonismo mas, sem saber, seguiu a proposta magonista, e chegou a conclusões análogas. Em certo sentido, através de sua obra, Clastres contribuiu para a "regeneração" do magonismo. Através da antropologia, trouxe a tona outras possibilidades organizacionais e filosóficas dos habitantes originários da América do Sul, que ainda hoje são desconhecidas de grande parte dos anarquistas. Estas possibilidades mostram, não só a viabilidade do social pautado na horizontalidade, na mutualidade e comunalidade, como também as diversas formas de integração destes e de outros princípios, que para além de viáveis, são vivenciados pelos indígenas cotidianamente.

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